Por Alexandre Queiroz, Oberdan Costa e João Rezende
No último dia 20, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) apresentou ao Senado o relatório final da CPI da Covid-19[1]. É a conclusão da necessária investigação sobre os eventuais desacertos na condução da crise sanitária e humanitária em que o país está imerso. Menos de uma semana depois da publicação do documento — que aconselha à criminalização das famigeradas fake news —, o Facebook seria obrigado a derrubar uma live do presidente, que leu suposta notícia de que “vacinados contra a Covid-19 estariam desenvolvendo Síndrome da Imunodeficiência Adquirida”[2].
Sem perder de vista a missão altiva que cumprem suas 1.180 folhas, urge, entretanto, discutir as fragilidades jurídicas do relatório. Em uma passada preambular de olhos, e sem a pretensão de adentrar o mérito político do conteúdo, são trazidos aqui exemplos técnicos relevantes:
1) Especificamente a imputação do crime de epidemia (artigo 267 do Código Penal) ao presidente e a ex-ministros é controversa. Só “causa epidemia”, para Cleber Masson, cioso da literalidade do texto legal, quem a inicia, inaugura[3]. Para Miguel Reale Júnior, por outro lado, bastaria à concreção do delito contribuir de forma relevante para sua propagação, a qualquer tempo. O crime aqui tratado foi criado após a Segunda Guerra Mundial, como forma de coibir o uso bélico de germes patogênicos[4], o que pode dar ao intérprete uma pista de quão restritiva deve ser a leitura do verbo “causar”. A hermenêutica, no Direito Penal, deve ser a mais literal possível, para salvaguardar os acusados do poder do Leviatã estatal (e os acusados cotidianos só muito raramente são presidentes). Veja-se que no crime de tráfico de drogas (artigo 33, caput, da Lei 11.343/06), abstratamente menos grave (cinco a 15 anos/dez a 15 anos), o legislador, atento ao princípio da legalidade, contemplou nada menos que 18 verbos típicos (“importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas”), a explicitar que, se quisesse apenar fases posteriores à da criação de uma epidemia, a lei tê-lo-ia feito expressamente, “em alto e bom som”.
2) Além disso, cabe discutir a justeza da aplicação do conceito jurídico de “epidemia” à situação fática de “pandemia”. Corrente doutrinária afirma que o alargamento semântico configuraria analogia in malam partem [5], meio de integração vedado em matéria penal. Sem o encaixe típico, não restaria configurado o crime do artigo 267 do Código Penal.
3) Na folha 979 do relatório, lê-se que:
“Em resumo: a distinção entre dolo e culpa se faz ao largo de um contínuo; dolo é conhecimento, e não vontade; perde sentido a bipartição do dolo; cabe ao direito, e não ao autor, decidir a respeito da relevância do conhecimento do perigo. Assim, a distinção entre dolo, como a forma mais grave da culpabilidade, e culpa (em especial a culpa consciente), como a forma mais leve da culpabilidade, só pode ser feita por meio do grau de perigo para o bem jurídico a que o agente deu causa”.
Ao que parece, em nome de expandir o instituto do dolo até que abarque a responsabilização de quem se quer indiciar ao final dos trabalhos, a teoria tripartite do crime é maltratada aqui a não mais poder. Dolo é, sim, constituído pela vontade, não só pelo conhecimento. O dolo, além disso, não está em um “contínuo” com a culpa, como se fossem duas tonalidades de uma mesma cor; são, isso, sim, coisas qualitativamente distintas (justamente pela necessária presença da vontade). Dolo não faz parte da culpabilidade, e, sim, da tipicidade, desde a teoria finalista de Welzel.
Olvida-se o autor do parágrafo supracitado, inclusive, que o rearranjo dos institutos pelo consagrado jurista responde a boas razões filosóficas, vez que o dolo dentro da culpabilidade, como acontecia nas teorias mecanicistas, levava a perplexidades na teoria do crime. Se a ação for nada mais que a causação neutra de um resultado legalmente defeso e as intenções pertencerem, por sua vez, somente ao juízo de culpabilidade, não haveria diferença entre o homicídio doloso e o culposo em termos de conduta. Além disso, ficaria difícil explicar os crimes omissivos e as tentativas se a conduta fosse não mais que causalidade pura, com a volição completamente inserida na culpabilidade e afastada, portanto, da tipicidade [6]. Tratar-se-ia de crime sem conduta, vez que, em um caso, o nexo causal naturalístico inexiste e, no outro, o resultado não se consumou?
4) Alguns indiciamentos presentes ao fim do documento parecem ter decorrido da indisposição de alguns convocados em contribuir ativamente com as averiguações na sessão de oitiva. É preciso, porém, lembrar que a prerrogativa constitucional de não produzir prova contra si mesmo não se esgota na tolerância ao silêncio. Quando lida em conjunto com a presunção constitucional de inocência, resulta na impossibilidade de decorram constrangimentos legais em decorrência do seu manuseio. Na acertada dicção do ministro Celso de Mello, a acusação não pode “desrespeitar o direito do investigado ao silêncio (nemo tenetur se detegere), nem lhe ordenar a condução coercitiva, nem constrangê-lo a produzir prova contra si próprio, nem lhe recusar o conhecimento das razões motivadoras do procedimento investigatório, nem submetê-lo a medidas sujeitas à reserva constitucional de jurisdição, nem impedi-lo de fazer-se acompanhar de advogado, nem impor, a este, indevidas restrições ao regular desempenho de suas prerrogativas profissionais”[7].
5) Há pessoas indiciadas por pertinência a organização criminosa, desacompanhada de qualquer outro crime imputado. Ora, se pelo artigo 2º da Lei 12.850/13 a organização criminosa é associação estruturalmente organizada de ao menos quatro pessoas para cometimento de “infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos”, não se pode falar de organização criminosa sem explicitar a qual crime está voltada a organização a que o indiciado teoricamente pertenceria. A acusação por crime de organização criminosa acabaria, portanto, se desassistida de crime outro, fulminada ela própria pela atipicidade.
Não se está aqui, e não é desdenhável repetir, a apontar deméritos políticos do texto. Nem sequer há aqui comparação entre os ganhos e as perdas decorrentes da votação do relatório final no exato formato votado no dia 26. Por fim, também não se quis aqui esgotar as críticas jurídicas possíveis ao documento. O que é certo é que, chancelados determinados desacertos em apuração tão visada pelo povo e pela comunidade jurídica, a instabilidade legal resultante pode se espalhar pelo ordenamento e criar injustiças em lugares e momentos ainda insuspeitos da Justiça Criminal nacional.
[1] https://www.poder360.com.br/cpi-da-covid/leia-a-integra-do-relatorio-final-da-cpi-da-covid-no-senado/.
[2] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/10/25/facebook-e-youtube-tiram-do-ar-live-em-que-bolsonaro-faz-relacao-falsa-entre-vacinas-contra-covid-e-aids.ghtml.
[3] MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal – v. 3: parte especial (artigos 213 a 359-H): esquematizado. 11. ed. São. Paulo: Método, 2021. Pág. 293.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha – 1O. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVM, 2018. Pág. 651.
[5] MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal – v. 3: parte especial (artigos 213 a 359-H): esquematizado. 11. ed. São. Paulo: Método, 2021. Pág. 294.
[6] JESUS, Damásio de. Parte geral; atualização André Estefam. Vol. 1- 37. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.
[7] HC 85419, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/10/2009, DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-02 PP-00252.