Introdução
Assim como em outras áreas do Direito, o atual quadro pandêmico já está gerando consequências no campo jurídico-criminal. É possível até mesmo prever o aumento das demandas nessa área, eis que os conflitos graves entre as pessoas tendem a aumentar exponencialmente nos períodos de crise generalizada. Além disso, pode-se vislumbrar a possibilidade de responsabilizações futuras, muitas das quais somente serão deflagradas após o término da pandemia ocasionada pelo COVID-19.
Tramitação dos processos criminais durante a pandemia coronavírus
Após o reconhecimento do estado de pandemia, o qual foi anunciado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de Março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 313, resolveu estabelecer regime de plantão extraordinário nos tribunais de todo o País, à exceção do Supremo Tribunal Federal (STF).
Com tal resolução, os prazos, as audiências e os julgamentos presenciais foram suspensos, da mesma forma que os atendimentos presenciais passaram a ser excepcionais. Porém, tal quadro não imobilizou a tramitação dos processos criminais, com os seus consequentes andamentos, os quais incluem julgamentos de habeas corpus, proferimento de sentenças e decisões, sessões de julgamentos virtuais, despachos virtuais (por meio de aplicativos, telefone, e-mail), entrega de memoriais não presenciais, análise de casos, dentre outros que sejam de interesse dos nossos clientes, o que exige a manutenção do acompanhamento das ações penais e inquéritos de nossa responsabilidade.
O exemplo de como a área criminal permanece em atividade mesmo na atual situação de pandemia foi dado na terça-feira, dia 24 de março, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou diversas medidas cautelares, incluindo a decretação de algumas prisões temporárias, no contexto da 5ª fase da “Operação Faroeste”.
Mas além do acompanhamento dos processos de nossa responsabilidade, também tem se mostrado de grande importância o acompanhamento diuturno das portarias expedidas pelos tribunais locais, para assim identificar qualquer desencontro entre essas e as resoluções expedidas pelo Conselho Nacional de Justiça. Assim, podemos impedir que eventual conflito prejudique o direito de nossos clientes, já que quando se fala em Direito Penal, o mínimo prejuízo é capaz de gerar um dano irreparável.
Criminalização do eventual descumprimento de medidas sanitárias impostas no período de crise
- A Lei n° 13.979/2020
A primeira consequência prática da atual crise para o Brasil foi a necessidade de repatriação surgida com a existência de brasileiros isolados na província chinesa de Hubei, epicentro da pandemia de coronavírus.
Para garantir que os nacionais repatriados cumprissem diversas regras sanitárias de quarentena, o Executivo Federal enviou ao congresso um projeto legislativo, o qual, após a aprovação parlamentar, gerou a Lei n° 13.979/2020, de duração limitada ao tempo de emergência sanitária internacional, restando ali definidas diversas medidas de enfrentamento ao COVID-19.
- Portarias interministeriais do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde.
O desenrolar da crise internacional, que redundou no reconhecimento do estado de pandemia, exigiu das autoridades um maior detalhamento das medidas previstas na Lei n° 13.979/2020, necessidade que resultou em pronunciamentos dos diversos entes governamentais responsáveis pela saúde pública. Dentre tais pronunciamentos, destacamos as Portarias Interministeriais n° 5/2020 e n° 7/2020.
A primeira trata da compulsoriedade das medidas sanitárias previstas na nova Lei, prevendo, inclusive, a possibilidade de aplicação de sanções penais, já previstas no Código Penal, especificamente pelo cometimento de condutas relacionadas ao descumprimento das referidas medidas, quais sejam, a desobediência e a infração de medida sanitária preventiva.
Já a segunda portaria detalhou temas que também não abordados na nova lei, elencando medidas sanitárias a serem tomadas no âmbito do sistema prisional.
- Decretos estaduais
Além das portarias emitidas pela União, observamos que os governos estaduais também decretaram diversas medidas de controle sanitário capazes de gerar restrições a direitos individuais, a exemplo da quarentena geral prevista no Decreto n° 64.879/2020, proferido pelo Governador do estado de São Paulo.
Outro exemplo foi o Decreto n° 40.539/2020, do Governador do Distrito Federal, que determinou a suspensão de grande parte da atividade comercial do DF, sob pena de responsabilização, nos termos previstos em lei.
- Consequências criminais ao descumprimento das medidas até então definidas pelos entes governamentais
A grande quantidade de atos governamentais proferidos nos últimos dias levanta seguinte questionamento: o descumprimento de tais determinações pode gerar a responsabilização criminal?
Ao observarmos o conteúdo da Lei n° 13.979/2020, verificamos que não há menção ao termo “crime”, sendo mencionada apenas a possibilidade de responsabilização legal. Forma similar foi utilizada na redação do já referido Decreto n° 40.539/2020, do Distrito Federal.
Contudo, a Portaria Interministerial n° 5/2020 menciona expressamente a possível incidência de dois tipos penais para reforçar a ideia de coercitividade, mesmo artifício utilizado pelo Decreto n° 64.879/2020, de São Paulo. Ou seja, ao menos em uma análise preliminar, e levando-se em conta que a infração de medida sanitária preventiva é uma norma penal em branco que exige uma normativa complementar para ser precisamente definida, é possível afirmar que as autoridades governamentais poderão se utilizar da responsabilização criminal como forma de reforçar as medidas de contenção à pandemia de COVID-19.
Podemos citar como exemplo uma situação em que uma pessoa, após ser examinada por um médico, descumpre o isolamento por ele determinado. Em tese, tal conduta poderia ser enquadrada no crime previsto no art. 268 do Código Penal, que trata precisamente da infração de medida sanitária preventiva.
Porém, a equipe QVQR entende que o Direito Penal é a última arma do arsenal sancionatório disponível ao Estado, e que, mesmo em momentos de crise, dever ser usado com moderação e cuidado. Nesse sentido, não se pode esquecer que um tipo penal incriminador somente pode ser criado por lei federal, e não por portarias ministeriais ou decretos estaduais.
Assim, caso seja necessário, acreditamos que eventuais excessos podem e devem ser questionados, eis que a pandemia pode exigir medidas duras, mas não a destruição completa do Estado de Direito.
Outras imputações possíveis no período de pandemia.
Além das sanções penais decorrentes dos crimes expressamente mencionados na Portaria Interministerial n° 5/2020, podemos vislumbrar a ocorrência de outros delitos que porventura ameacem a saúde alheia, como a prática de qualquer ato que tenha por finalidade a transmissão de moléstia grave, ou a exposição da vida de terceiro a perigo direto e iminente, condutas que se encontram previstas como no Código Penal.
Também é possível imaginar a ocorrência de diversos litígios trabalhistas, eis que o contexto de isolamento social certamente irá afetar os ganhos dos empregadores. Nesse cenário, não é impossível imaginar que os órgãos de controle realizem imputações de crimes contra a organização do trabalho.
No mesmo contexto de crise, as relações de consumo também deverão ser profundamente alteradas, o que pode ocasionar a responsabilização criminal de empreendedores pelo cometimento de condutas previstas na legislação como crime contra as relações de consumo.
Porém, ainda dentro da ideia de que o Direito Penal é a última instância coercitiva, mesmo em momentos de crise, a equipe QVQR acredita que cada caso deverá ser analisado de forma pormenorizada, exigindo-se das autoridades competentes que a análise da situação seja séria e desapaixonada.
Sistema prisional
Uma das primeiras preocupações entre os operadores do Direito que atuam na área criminal foi a possibilidade da ocorrência de contaminações em massa daqueles que se encontram custodiados em estabelecimentos prisionais, preocupação potencializada pela notória insalubridade e precariedade do sistema carcerário brasileiro.
- Situação do sistema antes do advento da pandemia:
Tal preocupação é justificável, já que o reconhecimento do estado de calamidade que assola o sistema carcerário nacional não é uma percepção recente.
Nessa perspectiva, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida ainda no ano de 2015, decidiu atribuir ao sistema carcerário brasileiro o estado de coisas inconstitucional, consistente em um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária…”[1]. Assim, muito antes do advento do COVID-19, observamos que a Suprema Corte reconheceu a incapacidade governamental generalizada em se garantir condições mínimas de sobrevivência ao custodiado, ao mesmo tempo em que nos lembrou do dever constitucional do Estado em manter a salubridade do sistema prisional.
- Chegada do vírus: turbulência no sistema prisional, dentro e fora do Brasil.
As notícias indicam que os sistemas prisionais ao redor do mundo foram diretamente afetados pelo advento do coronavírus. Na China, epicentro da pandemia, há relatos de contaminação maciça de presos[2]. Já na Itália, país europeu mais atingido pela moléstia, o informe da chegada do vírus causou diversas rebeliões em unidades prisionais[3].
Tal quadro não demorou a afetar o combalido sistema carcerário brasileiro, fazendo com que a mera suspensão da saída de presos em regime semiaberto tenha sido capaz de gerar fugas em massa de uma unidade prisional paulista[4].
- Recomendação CNJ
Atento ao potencial cenário de instabilidade que pode ser gerado pela pandemia de COVID-19 nos sistema carcerário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) resolveu emitir, em 17 de março de 2020, a recomendação de nº 62.
Tal recomendação veio em boa hora, tendo como principal intento a prevenção da propagação da nova moléstia nos estabelecimentos prisionais espalhados pelo Brasil, respeitando assim o dever do Estado em manter a mínima salubridade das pessoas que se encontram em situação de privação de liberdade.
Dentre as medidas elencadas para atingir tal objetivo, destacamos uma das finalidades específicas da Recomendação, qual seja, a proteção dos presos e de todos que de alguma forma atuam no sistema e que se encontram no chamado grupo de risco, como os idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e possuidoras de outras comorbidades preexistentes.
Contudo, lembramos que tal recomendação não é impositiva, o que significa que os juízes e tribunais locais mantêm a competência para analisar os casos que se encontram sob as suas alçadas jurisdicionais, podendo até mesmo discordar das medidas elencadas na Recomendação.
- Situação das prisões cautelares após a Recomendação n° 62 do CNJ
Dentre as diversas medidas recomendadas e que podem servir de argumento para um eventual pedido de revogação de prisão preventiva ou temporária, observamos aquelas nas quais o CNJ apontou para um caminho da redução da quantidade presos provisórios, sugerindo a soltura daqueles que foram acusados por crimes sem violência ou grave ameaça, ou que estejam encarcerados por um período superior a 90 (noventa dias).
Assim, podemos mencionar o exemplo de um cidadão que se encontra preso provisoriamente por supostamente ter cometido crime de peculato e lavagem de capitais. Nesse caso, a Recomendação do CNJ indica que eventual pedido de soltura poderá ser atendido pelo juiz da causa, eis que os delitos imputados não foram cometidos com violência ou grave ameaça.
- Situação da execução da pena privativa de liberdade após a Recomendação n° 62 do CNJ
Assim como no caso das prisões cautelares, a Recomendação do CNJ também trouxe diversas medidas voltadas a diminuição da massa carcerária que já se encontra cumprindo pena privativa de liberdade, dentre as quais desatacamos, por exemplo, a concessão de prisão domiciliar aos apenados que estejam cumprindo pena em regime aberto ou semiaberto.
Emergência Constitucional: possibilidade de decretação do estado de sítio e estado de defesa.
A pandemia de coronavírus tem gerado reações sociais sem precedentes recentes, como a corrida desenfreada a supermercados e farmácias, com o consequente esgotamento de diversos produtos considerados por muitos como fundamentais ao enfrentamento da crise.
Antevendo-se a possibilidade de um agravamento de tal contexto, tem-se suscitado a superveniência de cenários de desabastecimento e de caos social, algo que poderia ser considerado como comoção grave de repercussão nacional,o que exigiria uma proporcional reação estatal.
Confiando nas autoridades governamentais para tal quadro não se concretize, entendemos também que há necessidade de se alertar para a existências dos chamados mecanismos de emergência constitucional, como o estado de sítio e o estado de defesa.
Em tal caso, em que pese a previsão de severa restrição a direitos fundamentais, existindo até mesmo a possiblidade de uma espécie de prisão própria para a situação, acreditamos que a atuação estatal, ainda que amparada por um estado de emergência constitucional, pode ter eventual excesso questionado perante às cortes do país.
Término da pandemia: possíveis responsabilizações criminais posteriores por atos de gestores efetuados no transcurso da crise.
Por fim, observamos que a Lei n° 13.979/2020, com as alterações provenientes da Medida Provisória n° 926/2020, permitiu a dispensa de licitação para a aquisição de bens, serviços e insumos para o enfrentamento da pandemia, trazendo uma série de requisitos legais para a sua concretização.
Nesse contexto, não é impossível vislumbrar que algumas dessas dispensas poderão gerar questionamentos futuros, por parte dos órgãos de controle, com possibilidade de imputação de crimes como o previsto no art. 89 da Lei n° 8.666/93, eis que a mera inobservância de formalidade para a dispensa tem sido base para o oferecimento de denúncia contra gestores públicos e empresários.
Podemos citar como o exemplo o caso de um gestor municipal que participou de uma dispensa de licitação para a compra de máscaras e outros EPIs (equipamento de proteção individual), mas que não observou alguma das formalidades previstas na Lei n° 13.979/2020 e na Lei n° 8.666/93. Nesse caso, há possiblidade de que o gestor responda criminalmente por deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.
Apesar de tal alerta, entendemos que o momento de crise
sanitária exige que tais medidas ocorram sem grandes embaraços, motivo pelo
qual eventual responsabilização futura somente poderá ocorrer com a comprovação
indubitável de eventual intenção fraudulenta, não se concebendo que meras falhas
quanto à formalidade da dispensa possam justificar a persecução contra agentes
públicos que estiveram na linha de frente do combate contra a pandemia.
[1] ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
[2] Disponível em < https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo /noticia/2020/02/maisde-500-casos-de-coronavirus-nas-prisoes-dachinack6 vy8ix407bk01nw3s29lpmp.html >. Acesso em 16 mar 2020.
[3] Disponível em < https://veja.abril.com.br/mundo/italia-rebeliao-em-prisaodeixa-seis-mortos-apos-medidas-por-coronavirus/ >. Acesso em 16 mar 2020.
[4] Disponível em https://g1.globo.com/sp/santosregiao/noticia/2020/03/16/centenas-de-detentos-fogem-de-presidio-em-mongaguasp-video.ghtml. Acesso em 17 mar 2020.