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Código Civil completa 23 anos em transformação

Advogado que atuou na comissão que elaborou anteprojeto do novo Código Civil comenta avanços na legislação e na sociedade nas últimas duas décadas

Entrevista publicada no jornal Correio Braziliense, por Ana Maria Campos, em 16 de janeiro de 2025.

Base das relações privadas, o Código Civil Brasileiro acaba de completar 23 anos e um substituto está em discussão no Congresso Nacional. O anterior, de 1916, levou mais de um século para ser atualizado. Mas, com a velocidade das transformações sociais, duas décadas deixaram o conjunto de normas que regem as vidas dos cidadãos brasileiros defasado.

Mestre e graduado em direito pelo Ceub, especialista em processo civil pelo IDP, o advogado Carlos Vieira Filho integrou a comissão, presidida pelo vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luiz Felipe Salomão, que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil. Ele atuou especialmente no direito das garantias.

Na avaliação de Vieira, muitas áreas merecem atenção, como o direito digital, direito de família, direito sucessório e as regras para segurança jurídica de questões empresariais. O texto está há nove meses no Senado e desperta muitos debates, segundo Vieira, especialmente relacionados a questões ligadas a animais e relações familiares. Mas a discussão, na avaliação do especialista, é fundamental.

O Código Civil foi sancionado há exatos 23 anos. A sociedade brasileira mudou muito nesse período. Onde, na sua avaliação, é preciso mais avançar?

O Código Civil de 2002 representou um marco ao modernizar institutos jurídicos que vinham do Código de 1916. Contudo, em 23 anos de vigência, a sociedade brasileira passou por profundas transformações, evidenciando a necessidade de novas adaptações.

Um dos campos que exige avanço é o direito digital. O Código de 2002 não prevê dispositivos específicos para regulamentar relações jurídicas no ambiente virtual, como contratos digitais, proteção de dados e responsabilidade por danos causados por tecnologias emergentes, incluindo a inteligência artificial. Com o crescimento das interações digitais, essas lacunas tornam-se cada vez mais evidentes.

Além disso, o direito de Família e Sucessões também merece atenção, especialmente para modernizar a sucessão de bens digitais e tratar com mais clareza as questões envolvendo testamentos e direitos do cônjuge.

Por fim, o fortalecimento de disposições contratuais e empresariais, considerando o impacto da economia digital e das relações virtuais, entre outros aspectos igualmente relevantes, merecem atenção.

O anteprojeto estabelece o fim das menções a “homem e mulher”, nas referências a casal ou família, para contemplar outros arranjos familiares, como os homoafetivos. O STF já havia reconhecido as uniões homoafetivas. O que muda na prática com essa alteração?

A subcomissão responsável pelo tema propôs a referida alteração com o objetivo de alinhar o dispositivo normativo com as decisões e orientações do STF e do CNJ sobre o assunto, entendendo que a ausência de previsão expressa no Código Civil ainda gera inseguranças e lacunas interpretativas, o que se pretende sanar com a alteração proposta.

A revisão trata também do direito dos animais, que passam a ser considerados seres que podem ter proteção jurídica própria. Como essa mudança afeta na proteção aos animais?

A revisão do Código Civil, ao reconhecer os animais como “seres vivos sencientes” com proteção jurídica própria, representa uma mudança paradigmática no tratamento jurídico desses seres. Atualmente, os animais são equiparados a bens móveis (semoventes), sendo protegidos apenas de forma indireta, enquanto a revisão os retira dessa categoria, reconhecendo sua condição especial e sua capacidade de sentir.

Essa alteração confere maior respaldo legal para a criação de normas específicas que protejam os animais contra maus-tratos, exploração inadequada e abandono. Ela também reforça a possibilidade de responsabilização mais efetiva dos responsáveis por práticas abusivas, além de influenciar na interpretação judicial de casos que envolvam os direitos dos animais, destacando seu valor intrínseco, independentemente de sua utilidade para os humanos, além de reconhecer o direito dos ex-cônjuges e ex-conviventes de compartilhar a companhia dos animais de estimação e arcar conjuntamente com as despesas necessárias para sua manutenção.

Quais os avanços relacionados à tecnologia e ao novo mundo digital que vivemos com uso da inteligência artificial?

Entre os principais avanços, o anteprojeto prevê o direito à informação e transparência em interações com sistemas de inteligência artificial, além da responsabilidade civil nas ocasiões em que os referidos sistemas afetarem direitos ou causarem prejuízos aos usuários. Essa medida promove maior clareza sobre quem deve responder pelos impactos negativos da referida tecnologia. A regulamentação da IA no anteprojeto estabelece bases para evitar abusos, como a manipulação de dados ou violações de privacidade, ao mesmo tempo em que fomenta a confiança no uso dessas tecnologias. Também são abordadas questões relacionadas ao uso de algoritmos discriminatórios e ao tratamento de dados sensíveis, reforçando a necessidade de práticas justas e conformes à proteção de direitos fundamentais. O texto também trata da validade jurídica de contratos e documentos digitais, consolidando sua legitimidade desde que sua autenticidade e integridade sejam garantidas por meios confiáveis.

No direito de herança, há propostas de mudanças. O que se propõe principalmente?

No direito sucessório, uma das propostas de alteração mais marcantes é a exclusão do cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário. Pelo texto atual do Código Civil de 2002, o cônjuge concorre com descendentes e ascendentes na partilha dos bens. A proposta do anteprojeto, no entanto, retira o cônjuge dessa posição, atribuindo-lhe a terceira colocação na ordem de vocação hereditária. Com isso, o cônjuge passaria a ter direitos patrimoniais apenas na ausência de descendentes e ascendentes, ou, em casos excepcionais, poderia solicitar usufruto de bens para garantir sua subsistência, desde que comprovada a insuficiência de recursos.

Outra inovação significativa é a introdução do conceito de herança digital. O anteprojeto reconhece bens digitais de valor econômico, como arquivos armazenados em nuvem, contas em redes sociais e outros ativos intangíveis, como parte do espólio a ser transmitido aos herdeiros, regulamentando um patrimônio que não existia à época da formulação do Código de 2002.

Além disso, o anteprojeto enfatiza a importância de assegurar maior autonomia ao testador, permitindo maior liberdade na disposição de seus bens, desde que respeitada a proteção mínima de herdeiros necessários, como os descendentes. Busca-se, com isso, equilibrar a vontade do falecido com a proteção de direitos patrimoniais fundamentais, promovendo um sistema sucessório mais adaptável e dinâmico.

E nas questões de família?

Entre as inovações propostas pela subcomissão responsável pelo tema, está a ampliação do conceito de família, em consonância com as determinações do STF e do CNJ, conforme já abordado. Também se fortalece o reconhecimento à importância dos laços socioafetivos, permitindo a formalização de múltiplos vínculos parentais, medida que também já vinha sendo permitida pelo Judiciário brasileiro.

Além disso, o anteprojeto simplifica processos relacionados ao casamento e ao divórcio. A proposta facilita a alteração do regime de bens diretamente em cartório, sem necessidade de homologação judicial, e permite a realização do divórcio de forma unilateral e extrajudicial, acelerando procedimentos que antes dependiam do Judiciário.

Também se propôs alterar a sistemática do registro de nascimento. Pelo texto sugerido pela subcomissão, ao promover o registro de nascimento, a mãe poderá indicar o suposto pai, que será notificado pelo oficial do Registro Civil para reconhecer a paternidade ou realizar o exame de DNA. Caso o indicado se negue a reconhecer o vínculo ou se recuse a realizar o exame, o oficial terá a prerrogativa de incluir seu nome no registro de nascimento, cabendo ao indicado buscar judicialmente a exclusão, caso queira contestar o vínculo.

Há avanços nos direitos do consumidor?

O texto proposto não trata diretamente dos direitos do consumidor, mas suas regras sobre negócios jurídicos e contratos digitais podem impactá-los, garantindo validade e segurança às transações eletrônicas. Ao reforçar a boa-fé objetiva e disposições sobre vulnerabilidade contratual, aproxima-se dos princípios do Código de Defesa do Consumidor, oferecendo maior proteção ao consumidor contra práticas abusivas e desequilíbrios, mesmo sem foco específico nessa área.

E na segurança jurídica para realização de negócios?

O anteprojeto aprofunda a autonomia privada nos contratos paritários, alinhando-se às diretrizes da Lei de Liberdade Econômica. Estabelece a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais, salvo prova em contrário, e reforça os princípios de intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual.

Também é enfatizada a função social dos contratos, e reforçada a aplicação do princípio da boa-fé objetiva para todas as fases do processo obrigacional, incluindo as tratativas iniciais e a fase pós-contratual.

Por fim, introduz-se um Capítulo específico sobre a cessão da posição contratual, permitindo que qualquer das partes ceda sua posição, desde que haja concordância do outro contratante. Essa medida visa conferir maior flexibilidade e dinamismo às relações contratuais.

Houve debates e audiências suficientes para que a comissão de juristas chegasse a um texto que atenda a todas as questões?

Sim, o processo de elaboração do anteprojeto foi caracterizado por debates e audiências amplamente conduzidos pela Comissão de Juristas, com o objetivo de assegurar que o texto contemplasse as principais questões sociais, econômicas e jurídicas contemporâneas.

A Comissão reuniu especialistas de diversas áreas do direito, incluindo ministros, professores e advogados, e realizou consultas públicas, colhendo contribuições de diversos segmentos da sociedade.

O anteprojeto está no Senado desde abril. Acha que há demora na aprovação ou o debate político ainda é necessário?

A tramitação do anteprojeto no Senado desde abril reflete a complexidade de um texto que busca revisar um Código Civil tão abrangente e estruturante como o brasileiro. Embora a revisão já tenha passado por um processo técnico robusto, é natural que o debate político leve tempo, considerando a necessidade de alinhamento entre diversas visões e interesses representados no Congresso Nacional. O equilíbrio entre agilidade e qualidade no processo legislativo é fundamental para que o novo texto seja tecnicamente sólido, socialmente justo e politicamente viável.

Os direitos das mulheres são contemplados?

Sim, o anteprojeto contempla os direitos das mulheres de maneira ampla e integrada, alinhando-se às mudanças sociais e jurídicas. Reforça-se, por exemplo, a proteção contra discriminações em razão do gênero.

Além disso, o texto preserva a proteção patrimonial e familiar em cenários de dissolução de vínculos, como divórcio e união estável, e facilita o registro e a segurança jurídica em casos de filiação socioafetiva, beneficiando mulheres que exercem papel central na organização familiar.

A modernização de dispositivos sobre violência patrimonial e discriminação implícita, ainda que não mencionada explicitamente, também demonstra uma evolução no tratamento das vulnerabilidades que afetam mulheres em diferentes contextos sociais e jurídicos.

Quais temas, na sua avaliação, são mais polêmicos e devem esbarrar em questões ideológicas no Congresso?

A inclusão explícita da pluralidade de arranjos familiares no Código Civil certamente estenderá ao Congresso Nacional as discussões que já são travadas há anos no Judiciário brasileiro.

Outro ponto sensível é o reconhecimento dos animais como seres sencientes, com proteção jurídica própria. A proposta pode encontrar oposição de setores econômicos ligados à agropecuária e práticas culturais que envolvem o uso de animais, que enxergam riscos de restrições mais severas.

O direito de recusa terapêutica, que regulamenta a possibilidade de pessoas rejeitarem tratamentos médicos, mesmo quando há risco de morte ou agravamento da saúde, também pode despertar debates éticos.

O primeiro Código era de 1916 e esteve em vigência durante quase um século. A atualização ocorre 23 anos depois. Com as mudanças da sociedade cada vez mais ágeis, acredita que serão necessárias novas atualizações em breve?

Sim, é altamente provável que novas atualizações ao Código Civil sejam necessárias em um futuro próximo. A velocidade com que a sociedade evolui, impulsionada por avanços tecnológicos, mudanças culturais e transformações econômicas, exige que o ordenamento jurídico acompanhe essas dinâmicas para permanecer relevante e eficaz.

O Código de 1916, apesar de sua longevidade, enfrentou críticas por se tornar desatualizado frente às mudanças sociais ocorridas ao longo do século XX, o que resultou na edição do Código de 2002.

Agora, apenas 23 anos após a sua promulgação, o Código Civil já enfrenta demandas por revisões, como evidenciado pelo anteprojeto.

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